sexta-feira, 11 de março de 2011

A beleza foi perdoada?

Mulheres vivem o paradoxo da exigência da beleza e do estigma da futilidade

Ao passar na frente de um dos Diretórios Acadêmicos da faculdade onde cursa design gráfico, Gabriela Namie, 20 anos, ficou chocada com uma placa. Do lado de um pictograma feminino, igual ao encontrado em qualquer porta de banheiro feminino, se deparou com uma ilustração de uma mulher “todo gostosona”, nas palavras de Gabriela. Embaixo, uma legenda insinua que a Fundação Armando Álvares Penteado tem a “vantagem” de ser a instituição acadêmica com as mulheres mais bonitas.

“Muitas meninas apóiam esse pensamento, vestem camisetas com essa estampa. Eu me sinto ofendida”, lamenta a estudante. “O diretório está categorizando todas as mulheres da faculdade a partir desse conceito. Não vem ao caso se uma aluna é gostosa ou não, mas isso está sendo colocado como o único atributo que importa. Ou como se atribuísse um crédito à faculdade. Para esses alunos e alunas, isso é um elogio, dignifica a mulher”, desabafa.

É machismo elogiar a mulher por sua beleza? Ou beleza se tornou um atributo como outro qualquer, que não desqualifica uma profissional competente e inteligente? A discussão é controversa, porque passa pela percepção que muitos estudiosos têm de que a beleza em si se tornou uma característica socialmente indispensável para a felicidade e o bem-estar – muitas vezes, uma cobrança torturante. “Ser bonita é uma demanda sobre todas as mulheres”, afirma Rachel Moreno, autora do livro “A Beleza impossível – Mídia, Mulher e Consumo” (Editora Ágora). “As mulheres estão trabalhando mais, estudando mais, diminuindo a diferença salarial, temos uma presidente que furou o teto de vidro. Além de tudo isso, a beleza vem como uma chave para a felicidade.”

Na percepção de Rachel, o ambiente favorável para a busca da beleza impossível é criado pelo conjunto de mídia, mercado publicitário e a educação que as meninas recebem em casa e na escola. “Muita mulher chega à idade adulta achando que o sacrifício pela beleza facilita o acesso ao mercado de trabalho”. Segundo ela, o problema não é simplesmente se apresentar com boa aparência. “Você pode ter outro projeto de vida e priorizar outras coisas, mas a busca da beleza em paralelo te leva a sacrifícios e baixa sua autoestima. Vira uma obsessão”, diz.

O paradoxo vem quando a beleza se torna, apesar de “indispensável”, uma característica que reduz a mulher a algo que não tem nenhuma função além de ser admirado. É quando uma mulher bonita é automaticamente percebida como apenas bonita. A engenheira química Fernanda Lobo, 28 anos, trabalha numa multinacional do ramo de bebidas, e se nunca ficou sabendo ser vítima de comentários criticando-a, já ouviu muito a respeito de colegas. “Se você dá margem para as pessoas esse comentário vem naturalmente, sobretudo entre mulheres. Já vi pessoas usando shorts ou blusa decotada na empresa, que tem um dress code mais informal, e isso gera uma exposição negativa”, diz. “Mulher tem que ser linda, boa profissional, boa esposa, boa mãe. É uma ansiedade maior que transforma a gente em pessoas muito competitivas. Em vez de ser solidária, você acaba excluindo do grupo quem pareça uma ameaça.” Ela mesma evita não expor as tatuagens que tem. “Não me incomoda quando vou contratar alguém, mas a gente tem que aceitar que nem todo mundo é igual a gente”.

"Mulher tem que ser linda, boa profissional, boa esposa, boa mãe. É uma ansiedade maior que transforma a gente em pessoas muito competitivas", diz a Fernanda Lobo


Os defensores da beleza

Loira e linda, a executiva Renata Marcon, 46 anos, trabalha há 21 anos em uma grande multinacional de tecnologia. “No começo eu sofri esse tipo de preconceito”, conta. Hoje, Renata pode se orgulhar de ter construído uma imagem de competência e atitude firme. “O único problema que nós temos é que nossas reações são muito observadas. As mulheres precisam se policiar muito”, afirma. Maquiagem discreta, calças, camisas, saias e terninhos ajudam a comandar uma equipe e lidar com clientes que são 80% do sexo masculino. “Já tive clientes que comentaram que nunca usei de charme em nenhuma negociação. Esse é um problema que nós mulheres enfrentamos: quando ela é bonita e bem apresentada, é esperado que use a feminilidade dela para conseguir uma vantagem.”

Renata Marcon diz que sofreu preconceito no começo da carreira. "As mulheres precisam se policiar muito", diz


Sim: as mulheres são cobradas por sua beleza. Mas, no ambiente de trabalho, o preconceito se inverte e a feminilidade é colocada sob policiamento. A consultora de estilo Amanda Medeiros confirma: os sinais de feminilidade extrema estão vetados. “É preciso deixar roupas decotadas, coladas, com tons como rosa ou roxo vibrante para o ambiente pessoal. Evitar maquiagem pesada, unhas grandes ao extremo ou mesmo perfumes fortes”. Mas curiosamente, o lado feminino não pode sumir. “Mulheres que possuem altos cargos devem evitar tosar o lado feminino, imitando homens no comportamento ou na forma de vestir; é preciso encontrar equilíbrio entre força e gênero, sendo esforçada ao máximo para evitar críticas”, afirma. É só lembrar que líderes mundiais como a presidenta brasileira Dilma Roussef ou a chefe de Estado Angela Merckel raramente são vistas usando calça. O tailleur, com saia e blazer, é obrigatório nos fóruns. “Qual a necessidade dessa preservação aparente do gênero? Que códigos são esses?”, questiona a filósofa Dulce Maria Critelli.

A filósofa acredita que como valor, a beleza esteve sempre associada à mulher, dentro ou fora do ambiente de trabalho. “Culturalmente, a beleza ‘gruda’ na mulher, assim como.a sensibilidade. Ao homem estão associados a força e poder. Em torno desses estereótipos, há uma série de desdobramentos, que são os códigos e padrões que ao longo das épocas vão se estabelecendo. É esperado que toda mulher faça o sacrifício possível para estar associada a esse código de beleza.” Ela filósofa lembra que a atração pelo belo é natural ao ser humano, e que a “tirania da nossa cultura ” seja um modelo de beleza tão restrito. “O homem tem uma liberdade maior do que a mulher. Se ela não busca os códigos de beleza, é como se ela não tivesse se esforçado o suficiente. Nossa identidade está vinculada ao nosso aspecto.”


Beleza e inteligência

Se a competência, inteligência ou outro atributo em uma mulher é questionado, Dulce acredita que a base pode estar na ideia de que a beleza é uma forma de poder. “Há uma crença cultural antiga de que uma mulher vence o homem pelo sexo. A beleza é um atrativo para a sexualidade e a ameaça feminina vem daí, com o homem vencido pelo sexo. A mulher bonita cala o homem, ele fica bobo, nesse sentido”, afirma a filósofa.

Um dos defensores da “femme aux hommes”, ou seja, da mulher que se veste e se apresenta de forma a agradar o olhar masculino, é o colunista da Folha de S.Paulo Luiz Felipe Pondé. “Antes de tudo o homem olha a beleza, o que não quer dizer que ele não perceba outras características depois. Mas quem erotiza a inteligência é a mulher”, diz Pondé. “A mulher bonita e inteligente precisa tomar cuidado para não esfregar a inteligência na cara de um homem. Homem é inseguro”, diz. “Do ponto de vista externo, a inteligência feminina é um risco”. Mas ele pondera que a beleza pode criar mais problemas com colegas mulheres do que com homens. “A competitividade das mulheres passa pela beleza física”, diz. “Para um homem, a associação de beleza e inteligência no ambiente de trabalho poderá ser negativo se ele perder o cargo para uma bonita e inteligente, mas se não for bonita, ele também vai ficar irritado e desqualificá-la”. A medida entre a beleza que é vício e a que é virtude é muito tênue.
 

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